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Textos Tecnocráticos ~ Lênin

A Organização da Unidade da Nação
«... Num breve esboço da organização nacional, que a Comuna não teve tempo para elaborar mais desenvolvidamente, diz-se expressamente que a Comuna devia ser... a forma política mesmo da aldeia mais pequena...» Pelas Comunas devia também ser eleita a «Delegação Nacional» em Paris. 
«... As poucas mas importantes funções que depois ainda restavam a um governo central não deviam ser abolidas, como deliberadamente se falsificou, mas entregues a funcionários comunais, isto é, rigorosamente responsáveis... 
... A unidade da nação não devia ser quebrada, mas, pelo contrário, organizada pela Constituição Comunal; devia tornar-se uma realidade por meio da destruição daquele poder de Estado que se fazia passar pela encarnação desta unidade, mas que queria ser independente e superior face à nação, junto de cujos corpos ele era de facto apenas uma excrescência parasitária... Enquanto houvesse que amputar os órgãos meramente repressivos do velho poder governamental, as suas funções justificadas deviam ser despidas de um poder que reivindicava estar acima da sociedade e devolvidas aos servidores responsáveis da sociedade.»
Até que ponto os oportunistas da social-democracia contemporânea não compreenderam - seria talvez mais certo dizer: não quiseram compreender - estes raciocínios de Marx, é o que mostra da melhor maneira o livro, famoso à maneira de Heróstrato, As Premissas do Socialismo e as Tarefas  da Social-Democracia, do renegado Bernstein. Precisamente a propósito das palavras citadas de Marx, Bernstein escrevia que este programa, «pelo seu conteúdo político, revela, em todos os traços essenciais, a maior semelhança com o federalismo - de Proudhon... Apesar de todas as outras divergências entre Marx e o “pequeno-burguês” Proudhon (Bernstein coloca a palavra “pequeno-burguês” entre aspas, as quais deviam ser, na opinião dele, irônicas), nestes pontos o curso do seu pensamento é tão próximo quanto possível». Naturalmente, prossegue Bernstein, a importância das municipalidades cresce, mas «parece-me duvidoso que a primeira tarefa da democracia seja esta abolição (Auflosung - literalmente: dissolução, decomposição) dos Estados contemporâneos e esta mudança completa (Umwandlung - transformação) da sua organização como a imaginam Marx e Proudhon - formação de uma assembleia nacional, de delegados das assembleias provinciais ou regionais, as quais, por seu turno, seriam compostas por delegados das comunas - de maneira que toda a forma anterior das representações nacionais desapareceria completamente» (Bernstein, As Premissas, pp. 134 e 136 da edição alemã de 1899). 

Isto é simplesmente monstruoso: confundir as concepções de Marx sobre a «supressão do poder de Estado-parasita» com o federalismo de Proudhon! Mas isto não é casual, pois não vem sequer à ideia do oportunista que Marx não fala aqui de modo nenhum do federalismo em oposição ao centralismo, mas de quebrar a velha máquina de Estado burguesa existente em todos os países burgueses. 

Só vem à ideia do oportunista aquilo que vê à sua volta, no meio de filistinismo pequeno-burguês e de estagnação «reformista», a saber: unicamente as «municipalidades»! Quanto à revolução do proletariado, o oportunista até desaprendeu de pensar nela!

Isto é ridículo. Mas é de notar que neste ponto não se tenha discutido com Bernstein. Muitos refutaram Bernstein - especialmente Plekhánov na literatura russa, Kautsky na europeia, mas nem um nem outro disseram alguma coisa acerca desta deturpação de Marx por Bernstein.

O oportunista desaprendeu tão bem de pensar revolucionariamente e de reflectir acerca da revolução que atribui «federalismo» a Marx, confundindo-o com o fundador do anarquismo, Proudhon. E Kautsky, e Plekhanov, que querem ser marxistas ortodoxos, defender a doutrina do marxismo revolucionário, calam-se acerca disto! Aqui reside uma das raízes desta extrema vulgarização das concepções sobre a diferença entre o marxismo e o anarquismo, que é característica tanto dos kautskianos como dos oportunistas, e de que ainda teremos que falar. 

Nos citados raciocínios de Marx acerca da experiência da Comuna não há nenhum vestígio de federalismo. Marx coincide com Proudhon exactamente acerca de uma coisa que o oportunista Bernstein não vê. Marx diverge de Proudhon acerca de uma coisa na qual Bernstein vê a sua coincidência. 

Marx coincide com Proudhon em que ambos defendem que se deve «quebrar» a máquina de Estado actual. Esta coincidência do marxismo com o anarquismo (tanto com Proudhon como com Bakúnine), nem os oportunistas, nem os kautskianos querem vê-la porque se afastaram do marxismo neste ponto. 

Marx diverge quer de Proudhon quer de Bakúnine na questão do federalismo (não falando já da ditadura do proletariado). O federalismo é uma derivação de princípio das concepções pequenoburguesas do anarquismo. Marx é centralista. E nos raciocínios que citamos dele não existe o menor desvio do centralismo. Só as pessoas cheias de uma filistina «fé supersticiosa» no Estado podem tomar a supressão da máquina de Estado burguesa pela supressão do centralismo! 

Pois, se o proletariado e o campesinato pobre tomarem nas mãos o poder de Estado, se se organizarem com toda a liberdade em comunas e unirem a acção de todas as comunas para os ataques contra o capital, para destruir a resistência dos capitalistas, para restituir a toda a nação, a toda a sociedade, a propriedade privada dos caminhos-de-ferro, das fábricas, da terra, etc., não será isto centralismo? não será isto o centralismo democrático mais consequente? e, além disso, centralismo proletário? 

A Bernstein simplesmente não pode entrar na cabeça que é possível um centralismo voluntário, uma união voluntária das comunas na nação, uma fusão voluntária das comunas proletárias com o fim de destruir a dominação burguesa e a máquina de Estado burguesa. Como todo o filisteu, Bernstein imagina o centralismo como uma coisa que só pode ser imposta e mantida de cima, apenas por meio do funcionalismo e da casta militar. 

Marx sublinha intencionalmente, como que prevendo a possibilidade da deturpação das suas concepções, que constituem uma falsificação consciente as acusações à Comuna de que ela queria suprimir a unidade da nação, abolir o poder central. Marx emprega intencionalmente a expressão «organizar a unidade da nação» para contrapôr o centralismo consciente, democrático, proletário, ao burguês, militar, burocrático. 

Mas... não há pior surdo do que aquele que não quer ouvir. E os oportunistas da social-democracia actual não querem precisamente ouvir falar de suprimir o poder de Estado, de amputar o parasita.


A Supressão do Estado Parasita

Já citámos as correspondentes palavras de Marx e devemos completá-las.
«... O destino habitual de novas criações históricas - escrevia Marx - é serem confundidas com contrapartidas de formas mais antigas e mesmo já caducas da vida social, às quais em certa medida se assemelham. Assim, esta nova Comuna, a qual quebra (bricht) o Estado moderno, tem sido vista como uma revivescência das comunas medievais ..., uma liga de pequenos Estados como Montesquieu e os girondinos a sonharam ..., como uma forma exagerada da velha luta contra a super-centralização ... 
... A Constituição comunal teria, pelo contrário, devolvido ao corpo social todas as forças até aqui devoradas pelo “Estado” excrescência parasitária, o qual se alimenta da sociedade e tolhe o livremovimento desta. Só por esta acção ela teria posto em movimento o renascimento da França... 
... Na realidade, porém, a Constituição Comunal teria colocado os produtores rurais sob a direcção espiritual das capitais distritais, e ter-lhes-ia assegurado nestas, nos operários urbanos, os defensores naturais dos seus interesses. A simples existência da Comuna implicava, como é evidente, o autogoverno local, mas agora já não como um contrapeso contra o poder estatal já tornado supérfluo.»

«Supressão do poder de Estado», que era uma «excrescência parasitária», a sua «amputação», a sua «destruição», «o poder de Estado já tornado supérfluo» - eis em que termos Marx falava do Estado, avaliando e analisando a experiência da Comuna.

Tudo isto foi escrito há um pouco menos de meio século, e agora é preciso realizar verdadeiras escavações para levar ao conhecimento das amplas massas um marxismo não deturpado. As conclusões tiradas da observação da última grande revolução que Marx viveu foram esquecidas exactamente quando chegava a época das seguintes grandes revoluções do proletariado.
«... A multiplicidade das interpretações a que a Comuna foi submetida e a multiplicidade dos interesses que nela se viram expressos provam que ela era uma forma política integralmente capaz de expansão, ao passo que todas as formas de governo anteriores tinham sido essencialmente repressivas. O seu verdadeiro segredo era este: ela era essencialmente um governo da classe operária, o resultado da luta da classe que produz contra a que apropria, a forma política, finalmente descoberta, na qual se podia realizar a libertação económica do trabalho...  
Sem esta última condição a Constituição Comunal era uma impossibilidade e um engano ...»
Os utopistas dedicaram-se a «descobrir» as formas políticas sob as quais devia ter lugar a reorganização socialista da sociedade. Os anarquistas esquivavam-se completamente à questão das formas políticas. Os oportunistas da social-democracia actual aceitaram as formas políticas burguesas do Estado democrático parlamentar como um limite intransponível e quebraram a cabeça a prosternar-se diante deste «modelo», classificando de anarquismo qualquer aspiração de demolir estas formas.

Marx deduziu de toda a história do socialismo e da luta política que o Estado deverá desaparecer e que a forma transitória do seu desaparecimento (passagem do Estado para o não-Estado) será «o proletariado organizado como classe dominante». Mas Marx não se propunha descobrir as formas políticas deste futuro. Limitou-se a uma observação precisa da história francesa, à sua análise e à conclusão a que o conduziu o ano de 1851: as coisas aproximam-se da destruição da máquina de Estado burguesa.

E quando o movimento revolucionário de massas do proletariado eclodiu, Marx, apesar do fracasso deste movimento, apesar da sua curta duração e da sua fraqueza evidente, entregou-se ao estudo das formas que ele tinha descoberto.

A Comuna é a forma, «finalmente descoberta» pela revolução proletária, na qual se pode realizar a libertação económica do trabalho.

A Comuna é a primeira tentativa da revolução proletária para quebrar a máquina de Estado burguesa e a forma política «finalmente descoberta» pela qual se pode e se deve substituir o que foi  quebrado.

Veremos mais adiante na nossa exposição que as revoluções russas de 1905 e de 1917, noutra situação, noutras condições, continuam a obra da Comuna e confirmam a genial análise histórica de Marx.


Fonte: LENINE, Vladimir IlitchO Estado e a Revolução: A doutrina do Marxismo sobre o Estado e as Tarefas do Proletariado na Revolução. Presente tradução na versão das Obras Escolhidas de V.I.Lénine, 1917. Edição em Português da Editorial Avante, 1977, t2, pp 219-305