A história apenas começa
Ao contrário do que tanto se disse, a história não acabou; ela apenas começa. Antes o
que havia era uma história de lugares, regiões, países. As histórias podiam ser, no máximo,
continentais, em função dos impérios que se estabeleceram a uma escala mais ampla. O que até
então se chamava de história universal era a visão pretensiosa de um país ou continente sobre os
outros, considerados bárbaros ou irrelevantes. Chegava-se a dizer de tal ou tal povo que ele era sem
história...
A humanidade como um bloco revolucionário
O ecúmeno era formado de frações separadas ou escassamente relacionadas do
planeta. Somente agora a humanidade pode identificar-se como um todo e reconhecer sua unidade,
quando faz sua entrada na cena histórica como um bloco. É uma entrada revolucionária, graças à
interdependências das economias, dos governos, dos lugares. O movimento do mundo revela uma só
pulsação, ainda que as condições sejam diversas segundo continentes, países, lugares, valorizados
pela sua forma de participação na produção dessa nova história.
Vivemos em um mundo complexo, marcado na ordem material pela multiplicação
incessante do número de objetos e na ordem imaterial pela infinidade de relações que aos objetos
nos unem. Nos últimos cinqüenta anos criaram-se mais coisas do que nos cinqüenta mil precedentes.
Nosso mundo é complexo e confuso ao mesmo tempo, graças à força com a qual a ideologia penetra
objetos e ações. Por isso mesmo, a era da globalização, mais do que qualquer outra antes dela, é
exigente de uma interpretação sistêmica cuidadosa, de modo a permitir que cada coisa, natural ou
artificial, seja redefinida em relação com o todo planetário. Essa totalidade-mundo se manifesta pela
unidade das técnicas e das ações.
A grande sorte dos que desejam pensar a nossa época é a existência de uma técnica
globalizada, direta ou indiretamente presente em todos os lugares, e de uma política planetariamente
exercida, que une e norteia os objetos técnicos. Juntas, elas autorizam uma leitura, ao mesmo tempo geral e específica, filosófica e prática, de cada ponto da Terra.
Nesse emaranhado de técnicas dentro do qual estamos vivendo, o homem pouco a
pouco descobre suas novas forças. Já que o meio ambiente é cada vez menos natural, o uso do
entorno imediato pode ser menos aleatório. As coisas valem pela sua constituição, isto é, pelo que
podem oferecer. Os gestos valem pela adequação às coisas a que se dirigem. Ampliam-se e
diversificam-se as escolhas, desde que se possam combinar adequadamente técnica e política.
Aumentam a previsibilidade e a eficácia das ações.
Um dado importante de nossa época é a coincidência entre a produção dessa história
universal e a relativa liberação do homem em relação à natureza. A denominação de era da
inteligência poderia ter fundamento neste fato concreto: os materiais hoje responsáveis pelas
realizações preponderantes são cada vez mais objetos materiais manufaturados e não mais matérias primas naturais. Pensamos ousadamente as soluções mais fantasiosas e em seguida buscamos os
instrumentos adequados à sua realização. Na era da ecologia triunfante, é o homem quem fabrica a
natureza, ou lhe atribui valor e sentido, por meio de suas ações já realizadas, em curso ou meramente
imaginadas. Por isso, tudo o que existe constitui uma perspectiva de valor. Todos os lugares fazem
parte da história. As pretensões e a cobiça povoam e valorizam territórios desertos.
A nova consciência de ser mundo
Graças aos progressos fulminantes da informação, o mundo fica mais perto de cada um,
não importa onde esteja. O outro, isto é, o resto da humanidade, parece estar próximo. Criam-se, para
todos, a certeza e, logo depois, a consciência de ser mundo e de estar no mundo, mesmo se ainda
não o alcançamos em plenitude material ou intelectual. O próprio mundo se instala nos lugares,
sobretudo as grandes cidades, pela presença maciça de uma humanidade misturada, vinda de todos
os quadrantes e trazendo consigo interpretações variadas e múltiplas, que ao mesmo se chocam e
colaboram na produção renovada do entendimento e da crítica da existência. Assim, o cotidiano de
cada um se enriquece, pela experiência própria e pela do vizinho, tanto pelas realizações atuais como
pelas perspectivas de futuro. As dialéticas da vida nos lugares, agora mais enriquecidas, são
paralelamente o caldo de cultura necessário à proposição e ao exercício de uma nova política.
Funda-se, de fato, um novo mundo. Para sermos ainda mais precisos, o que, afinal, se
cria é o mundo como realidade histórica unitária, ainda que ele seja extremamente diversificado. Ele é
datado com uma data substantivamente única, graças aos traços comuns de sua constituição técnica
e à existência de um único motor para as ações hegemônicas, representado pelo lucro à escala
global. É isso, aliás, que, junto a informação generalizada, assegurará a cada lugar a comunhão
universal com todos os outros.
Ousamos, desse modo, pensar que a história do homem sobre a Terra dispõe afinal das
condições objetivas, materiais e intelectuais, para superar o endeusamento do dinheiro e dos objetos
técnicos e enfrentar o começo de uma nova trajetória. Aqui, não se trata de estabelecer datas, nem de
fixar momentos da folhinha, marcos num calendário. Como o relógio, a folhinha e o calendário são
convencionais, repetitivos e historicamente vazios. O que conta mesmo é o tempo das possibilidades
efetivamente criadas, o que, à sua época, cada geração encontra disponível, isso a que chamamos
tempo empírico, cujas mudanças são marcadas pela irrupção de novos objetos, de novas ações e
relações e de novas idéias.
A grande mutação contemporânea
Diante do que é o mundo atual, como disponibilidade e como possibilidade, acreditamos
que as condições materiais já estão dadas para que se imponha a desejada grande mutação, mas
seu destino vai depender de como disponibilidades e possibilidades serão aproveitadas pela política.
Na sua forma material, unicamente corpórea, as técnicas talvez sejam irreversíveis, porque aderem
ao território e ao cotidiano. De um ponto de vista existencial, elas podem obter um outro uso e uma
outra significação. A globalização atual não é irreversível.
Agora que estamos descobrindo o sentido de nossa presença no planeta, pode-se dizer
que uma história universal verdadeiramente humana está, finalmente, começando. A mesma
materialidade, atualmente utilizada para construir um mundo confuso e perverso, pode vir a ser uma
condição da construção de um mundo mais humano. Basta que se completem as duas grandes
mutações ora em gestação: a mutação tecnológica e a mutação filosófica da espécie humana.
A grande mutação tecnológica é dada com a emergência das técnicas da informação, as
quais – ao contrário das técnicas das máquinas – são constitucionalmente divisíveis, flexíveis e dóceis,
adaptáveis a todos os meios e culturas, ainda que seu uso perverso atual seja subordinado aos
interesses dos grandes capitais. Mas, quando sua utilização for democratizada, essas técnicas doces
estarão ao serviço do homem.
Muito falamos hoje nos progressos e nas promessas da engenharia genética, que
conduziriam a uma mutação do homem biológico, algo que ainda é do domínio da história da ciência e
da técnica. Pouco, no entanto, se fala das condições, também hoje presentes, que podem assegurar
uma mutação filosófica do homem, capaz de atribuir um novo sentido à existência de cada pessoa e,
também, do planeta.
Fonte: SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. VI - A Transição em Marcha, Capítulo 30. Editora Record. Rio de Janeiro, 2000.